Lutero contra o abuso espiritual

Aos 16 anos, eu era membro de uma das mais conhecidas igrejas neopentecostais do Brasil. Lá fiz muitos amigos e também estive cercada de adultos que cuidaram de mim. Por outro lado, alguns problemas não me passavam despercebidos; o modelo de liderança da igreja era bastante autoritário, e qualquer desacordo era prontamente percebido como rebeldia.

Em um congresso, fui surpreendida por um pastor visitante que declarou o seguinte: “Se meu líder me mandasse colocar fogo na igreja, eu colocaria fogo sem pensar duas vezes. Ele que se entendesse com Deus depois”.

De fato, eu não fui a única na plateia que ficou apavorada ao ouvir um pastor dizendo que cometeria um crime se o líder assim mandasse. Se me lembro bem, isso acarretou na saída de alguns jovens mais velhos, que decidiram deixar a congregação.

Esse não foi único episódio esquisito que presenciei. Entre muitos outros, tenho vívida a seguinte cena em minha memória: nosso pastor de jovens, bravo, chutava as cadeiras de plástico porque nós não estávamos “adorando a Deus com fervor suficiente” - até que o celular de um irmão humilde da igreja saiu voando e se espatifou no chão. Certa vez, esse pastor de jovens declarou que aqueles que estavam incomodados com sua liderança deveria orar para Deus tirá-lo como tirou Saul.

No entanto, logo percebi que o problema do autoritarismo não era desse líder em si. Em um domingo, ele estava ausente porque havia ido passear com a família na praia, e, por causa disso, foi repreendido e humilhado de púlpito pelo pastor principal - (afinal, onde já se viu faltar um culto para descansar?).

A verdade é que o abuso espiritual funciona assim: ele é uma cadeia que se retroalimenta. Os superiores o praticam com seus liderados na hierarquia, que os praticam com seus subliderados e assim por diante, até que a prática alcance os simples membros. Quem discorda de seu líder pensa estar discordando do próprio Deus, e então sente medo de ir para inferno -, pois não “se submeteu à ordem constituída por Deus” (em um linguagem mais reformada) ou tem medo de ficar sem “cobertura espiritual” (em uma linguagem mais neopentecostal).

Esse tipo de prática não é novo. Felizmente, temos em nossa tradição protestante um bom remédio para esses males. Lutero acreditava que a Palavra de Deus estava acima de qualquer autoridade na igreja. Para ele, todo o crente tinha não apenas o direito, mas também o dever de julgar se o que as autoridades na igreja ensinavam estava de acordo com as Escrituras. No tempo de Lutero, as doutrinas poderiam ser julgadas apenas por “bispos, eruditos e concílios”. Em um texto seu de 1523, o reformador explica por que agora isso deveria ser diferente:

Pois Cristo determina precisamente o contrário e tira dos bispos, eruditos e concílios […] tanto o direito como o poder de julgar a doutrina, dando-os a todo mundo e a todos os cristãos de modo geral, ao dizer em Jo 10[.27]: "Minhas ovelhas ouvem a minha voz"; igualmente [v. 51]: "Minhas ovelhas não seguirão o estranho, antes fugirão dele, porque não conhecem a voz dos estranhos"; ou [v.8]: "Todos quantos vieram antes de mim, são ladrões e salteadores; mas as ovelhas não lhes deram ouvido.”

As ovelhas de Cristo precisam saber reconhecer Sua voz. Em outro trecho de seu texto, Lutero ainda acrescenta: "os ouvintes não só têm o poder e o direito de julgar tudo que é pregado, mas também o dever, sob o risco de caírem na desgraça de Deus”. Todo cristão é convocado a julgar se está realmente ouvindo a voz de Cristo ou de ladrões e salteadores.

Então, se vemos uma prática que causa um mal gritante aos nossos irmãos - como as que apontei acima -, o texto bíblico não apenas nos permite, mas nos convoca a agir. É claro que devemos ser sábios, sabendo que nossas lideranças são responsáveis por cuidar de nós. Mas… se meu líder me mandasse colocar fogo na igreja, não se engane: ele seria prontamente denunciado à polícia.

O que Cristo diz em sua Palavra? Você sabe reconhecer a Sua voz? Lembre-se que a voz de Cristo está acima de qualquer voz humana.